Opinião: descriminalização do porte de maconha pelo STF deve reduzir encarceramento, mas criar problemas na saúde pública

Após um trâmite de quase uma década no Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na última semana, pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio de até 40g no Brasil. A medida, que visa diferenciar usuários de traficantes, divide a sociedade brasileira entre os que concordam e os que discordam, e a discussão passa por áreas como segurança pública, saúde pública e direitos humanos. A Corte publicou, nesta sexta-feira (28), a ata do julgamento.

Histórico

O trâmite teve início em 2015, com um voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes, relator do caso, no sentido de descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio. Posteriormente, ele reajustou o voto para restringir a medida ao porte de maconha e pela fixação de parâmetros, diferenciando o tráfico do consumo próprio.

Segundo o advogado criminalista Rodrigo Godinho, naquela época, o ministro Edson Fachin afirmou que a regra era inconstitucional exclusivamente em relação à maconha. Contudo, entendeu que os parâmetros para diferenciar traficantes de usuários deveriam ser fixados pelo Congresso Nacional. Já o ministro Luís Roberto Barroso se manifestou pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, propondo como parâmetro a posse de 25 gramas da substância ou a plantação de até seis plantas fêmeas da espécie.

O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Teori Zavascki, falecido, e, em agosto de 2023, o caso voltou ao Plenário com o posicionamento do ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Teori. Em seu voto, Moraes propôs que as pessoas flagradas com até 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas sejam presumidamente usuárias. Ele explicou que chegou a esses números a partir de um estudo sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo entre 2006 e 2017.

Por sua vez, a ministra Rosa Weber, hoje aposentada, destacou que a criminalização do porte de maconha para consumo pessoal é desproporcional, pois afeta severamente a autonomia privada e acaba com os efeitos pretendidos pela lei quanto ao tratamento e reinserção social de usuários e dependentes. “Os argumentos focais a favor da descriminalização é o fato do encarceramento exacerbado e seletivo das pessoas. Já os contra falam que irá difundir o tráfico de drogas e haverá um estímulo de drogas no país”, explica o advogado.

Precedentes

As discussões que versam sobre política criminal referente às drogas, de acordo com ele, não são recentes; pelo contrário, são pautas interdisciplinares que buscam trazer a lume questões envolvendo desigualdade social, violação de direitos humanos, saúde e segurança públicas, dentre outros eixos relevantes. Neste viés, em se tratando de direito comparado, diz o advogado, alguns países já legalizaram ou regulamentaram o uso e o plantio da maconha, descriminalizaram o consumo pessoal e fortaleceram as políticas públicas de saúde e assistência social, a exemplo dos da Europa. 

“Contudo, há de se destacar que, em muitos países, ainda prevalece a repressão, com sistemas de Justiça que preveem até a pena de morte. Observe-se em Portugal, a título de ilustração. Lá, subsiste uma política que retira o usuário do cerne do sistema de Justiça e deixa-o sob tutela da rede de saúde pública, privilegiando a adoção de ações de redução de danos, com resultados positivos. Em contrapartida, temos a Indonésia, que empreende uma política linha-dura no combate às drogas, a qual não se restringe aos discursos, estando imbricada no sistema de justiça criminal, prisional e de segurança pública”, destaca. 

No país, Rodrigo lembra que os usuários quase não têm acesso a políticas clínicas, de cuidado ou de assistência social, vigorando a imposição de penas de regime fechado, ao passo que o mercado ilegal prospera e as prisões lotam. A sistemática, no entanto, não é característica apenas da Indonésia. A Anistia Internacional, em relatório relativamente recente (2022), publicou dados sobre a imposição de penas de mortes por crimes relativos às drogas, tendo ocorrido 225 execuções no Irã, 57 na Arábia Saudita e 11 em Singapura.

Mudanças

O artigo 28 da legislação brasileira definia que o usuário de drogas não seria preso, mas responderia nos juizados especiais, a fim de sofrer uma pena que vise sua reinserção social. Com a decisão do STF, só não ocorre o procedimento supra se a pessoa for flagrada com até 40 gramas de maconha. “O STF entendeu por tornar o porte, uso, transporte etc, conforme preceitua o caput do artigo 28 da lei 11.343/06, da maconha em até 40g como um ilícito administrativo. As demais substâncias entorpecentes continuam a ser um ilícito penal, devendo ser verificado se aquela substância era para consumo próprio ou tráfico”, avalia Rodrigo.

As consequências positivas, na avaliação do advogado, é a questão do encarceramento “desnecessário e preconceituoso” que ocorrem nestes casos, pois, conforme ele cita, os dados apontam que, na maior parte das vezes, o negro preso com a mesma quantidade de droga não possui o mesmo tratamento legal. Outro fato importante, diz, é a quantificação da substância maconha para se considerar tráfico, havendo limites objetivos para determinar uma sanção ou não. “Importante ressaltar que a decisão do STF ajuda pessoas com dores crônicas, onde já existem pesquisas que o uso medicinal da maconha ajuda a diminuir as dores, diminuindo com isso o preconceito com o tratamento”.

Já a consequência negativa é que o vício em substâncias entorpecentes pode se iniciar com o uso da maconha, considerado um problema de saúde com a CID F19.2. Acredita-se, afirma, que poderá haver um aumento no número de usuários, gerando, assim, um problema maior de saúde pública. “Todavia, acredito que o vício depende de pessoa para pessoa e os vícios podem ser originados e ampliados através de vários fatores que não somente o uso de maconha”, opina.

A maior crítica do advogado a essa decisão e a toda a discussão gerada é que, para ele, o Judiciário relativizou o artigo 28 para o usuário da substância maconha em até 40 gramas, porém, não se questiona onde essa pessoa vai adquirir a substância que continua a ser considerada entorpecente. Se trata, segundo Rodrigo, de uma liberação “para inglês ver”, pois a maconha será comprada de alguém que a produz em escalas comerciais para o tráfico, logo, essa discussão deveria ser tomada em conjunto com o Legislativo, Executivo e Judiciário, visto que todos esses entes sofrem com o tráfico de drogas e suas consequências.

Foto: Divulgação / STF